quarta-feira, 25 de maio de 2011

TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS: UMA MORTE FORNECE NOVA CHANCE PARA OUTRAS VIDAS

Parentes de Julio Garcia tocam o peito de Sebastiao Laurenco, que recebeu o coração transplantado

Mirtala Garcia colocou a mão sobre o peito de Sebastiao Laurenco, depois pousou seu ouvido sobre ele por um instante.

“É o meu coração”, disse ela. “Ainda está batendo para mim.”

Embora ela tivesse acabado de conhecer Laurenco, ela conhecia aquele coração há muito tempo. Ele pertencia a seu marido, Julio, que morreu de uma hemorragia cerebral em março de 2010, aos 38 anos. Garcia doou os órgãos de seu marido, e a perda da família deu uma segunda chance a Laurenco, 57.

Mas ele não foi o único. Sete ou oito pessoas que precisavam de transplantes urgentes também receberam órgãos de Julio Garcia. Um número grande, o que é pouco comum. (A média por doadores de órgão é de cerca de três pessoas). Mais incomum ainda foi o fato de sua família e o grupo de transplantados ter se conhecido na quarta-feira num encontro muito comovente na sede da Rede de Doadores de Órgãos de Nova York, em Manhattan, que coordenou os transplantes.

A história dos Garcia e das pessoas cujas vidas foram salvas pelos órgãos doados por um homem oferece uma visão sobre o mundo pesado dos transplantes e doações de órgãos, em que as pessoas que estão na lista de transplantes sabem que podem morrer esperando, e os hospitais pedem que as famílias de pacientes com morte cerebral, talvez no momento mais difícil de suas vidas, olhem além do seu luto e permitam que os órgãos de um ente querido sejam removidos para ajudar estranhos.

Não há doadores de órgãos suficientes, nem de longe, para todas as pessoas que precisam de transplantes. Quase 111 mil pessoas estão em listas de espera nos Estados Unidos, mas no ano passado foram realizados apenas 28.663 transplantes, de acordo com a Rede Unida para Compartilhamento de Órgãos, que coordena o sistema de transplantes em todo o país. Este ano, 6 a 7 mil pessoas devem morrer esperando.

Na semana passada, Garcia e seus filhos, de 5, 11 e 18 anos, que moram em Stamford, Connecticut, encontraram quatro dos receptores dos órgãos de seu marido pela primeira vez. Um quinto receptor também compareceu, um dos dois que tinham insuficiência renal, ambos membros da igreja de Garcia, a quem ela escolheu para receber os rins.

Garcia dirigiu-se a uma sala cheia de receptores, famílias, médicos, enfermeiras, o ministro da igreja, sua família e funcionários da rede. Ela falou brevemente, usando um intérprete. Ela disse que seu marido tinha um grande coração e ficaria muito orgulhoso de ter “dado a vida depois da morte”. Ninguém nunca o esquecerá, disse ela.

Elaine R. Berg, presidente da rede de doadores, disse: “essas reuniões não acontecem com tanta frequência. Eu estou aqui há 11 anos, e se elas acontecem uma vez por ano, é muito. Nunca encontrei cinco receptores de um único doador. É muito incomum.”

Em muitos casos, os receptores ou as famílias doadoras, ou ambos, preferem permanecer anônimos, disse Berg. Os receptores podem enviar cartas de agradecimento através da rede, mas normalmente eles e os doadores não optam por se encontrar.

“É muito intimidador e muito comovente”, disse Berg. “Algumas pessoas não aguentam isso.”

Mas ela disse que encontrar os receptores pode oferecer conforto para as famílias doadoras.

Julio Garcia era tão jovem e forte que suas córneas e seis outros órgãos estavam saudáveis o suficiente para servirem para transplante: o coração, um pulmão, o pâncreas, ambos os rins e o fígado, que foi dividido para salvar duas pessoas, um adulto e uma criança.

Nas fotos, Julio Garcia era bonito, tinha um sorriso maroto. Sua mulher diz que ele adorava fazer piadas e dar risada. Mas ele também era profundamente religioso, e, enquanto pastor de uma igreja evangélica em Stamford, ele pregava bastante e dava conselhos matrimoniais. Ele ganhava a vida como carpinteiro. Tanto ele quanto a mulher, originários da Guatemala, tornaram-se cidadãos naturalizados.

Durante muitos anos, ele sofreu periodicamente de dores de cabeça sérias, mas foi informado de que eram enxaquecas. As dores de cabeça ficaram muito piores que de costume durante a semana anterior ao dia 17 de março, uma quarta-feira. Naquele dia, com a cabeça doendo, ele disse aos seus filhos que os amava, e saiu para o trabalho.

Ele ligou para a mulher naquela tarde, dizendo que sua dor estava terrível e que seu corpo estava formigando. Ela quis chamar uma ambulância, mas ele pediu que ela fosse buscá-lo. A mulher o levou a um hospital de Stamford. Uma imensa hemorragia e um inchaço estavam fazendo pressão em seu cérebro. Os médicos tentaram aliviar a pressão, e transferiram Garcia para o hospital New York-Presbyterian/Weill Cornell em Manhattan.

Quando ele chegou lá na noite de quarta-feira, estava em coma profundo, precisava de aparelhos para respirar e estava com a pressão extremamente baixa – todos os sinais de uma grande hemorragia afetando o tronco encefálico, de acordo com o Dr. Axel Rosengart, diretor de cuidado neurológico intensivo. Os médicos estabilizaram-no e tentaram novamente reduzir a pressão do cérebro, mas os exames mostraram danos extensos e irreversíveis, disse Rosengart.

Rosengart disse que não tinha certeza, mas suspeitava que o sangramento tivesse sido causado por uma má formação arteriovenosa, uma anormalidade que talvez Garcia tivesse desde o nascimento.

Na quinta-feira, disse Rosengart, ele começou a avisar a família de que Garcia estava a caminho da morte cerebral. No final do dia, o diagnóstico foi feito duas vezes, por dois médicos diferentes, de acordo com a lei estadual. Um paciente com morte cerebral é considerado legalmente morto. Nesse ponto, há duas prioridades, disse Rosengart: “a família e sua sobrevivência emocional, e preservar os órgãos”.

Os pacientes com morte cerebral se tornam instáveis do ponto de vista médico, e costuma ser necessário um tratamento intensivo para evitar que os órgãos falhem.

Rosengart e uma assistente social da Rede de Doadores de Órgãos de Nova York perguntaram a Mirtala Garcia sobre a doação de órgãos.

Primeiro, lembra-se Garcia, ela não conseguiu aceitar o diagnóstico de morte cerebral. Ainda esperando que um milagre salvasse seu marido, ela pediu que eles esperassem.

No dia seguinte, sexta-feira, ficou claro para ela que seu marido não se recuperaria. Rosengart e a assistente social, Michelle Aguiar, pediram para ela pensar no que Julio Garcia gostaria que ela fizesse.

“Mais da metade das vezes, se você oferece a alguém a chance de salvar uma vida, quando a pessoa está pensando claramente, com certeza ela dirá que sim”, disse Aguiar. “O momento certo é crucial.”

Ela disse que 70% das famílias a quem ela perguntou, deram-lhe permissão, uma das taxas mais altas na rede de Nova York.

Mirtala Garcia disse que pensou sobre como era importante para seu marido ajudar outras pessoas. Ela se lembrou de um filme que eles assistiram, “Sete Gramas”, sobre um homem que doa seus órgãos. Julio Garcia disse que seria ótimo salvar vidas, e se alguém recebesse seu coração, ele esperava que ela conhecesse a pessoa. Ela se lembrou de outro filme em que uma pessoa entrou em estado de coma, e depois disso Julio Garcia disse que não queria que sua família o visse definhar daquela forma.

Ela falou com parentes e com seu ministro. Por fim, Mirtala Garcia pensou em sua amiga Milvia Palma, que precisava de um transplante de rim. Ela ouviu a voz de Palma em sua mente, dizendo: “estou doente”. E naquele momento, a decisão foi tomada. Julio Garcia havia dito que Deus ajudaria Palma. Quem imaginaria que seria através de sua própria morte?

Na noite de sexta-feira, Mirtala Garcia assinou os formulários de consentimento. A rede de doadores entrou em ação, localizando pacientes no topo das listas de transplantes, buscando compatibilidades de tipo sanguíneo, tamanho corporal e outros fatores.

Pacientes de Colúmbia se qualificaram para receber o coração, o fígado e o pulmão; uma criança de um ano de Mount Sinai também receberia uma parte do fígado, e Palma e Edward Santos, outro amigo e membro da igreja, receberiam os rins. O pâncreas iria para um paciente em Minnesota, que preferiu permanecer anônimo.

As primeiras operações foram marcadas para domingo. Thomas Ginz, 67, de Guilford, Connecticut, recebeu um telefonema às 6h30 da manhã.

“Você recebe um documento do hospital para entregar à polícia caso você precise ultrapassar o limite de velocidade se precisar, porque o tempo é crucial”, disse Ginz. (Ele não precisou usá-lo.)

Ginz, que tem uma doença chamada fibrose pulmonar idiopática, que provoca lesões nos pulmões, precisava de oxigênio o tempo todo e estava se deteriorando tão rápido que até o médico tinha começado a temer que um transplante talvez não chegasse a tempo.

Agora, Ginz se perguntava se a operação de fato aconteceria. Um mês antes, um pulmão havia ficado disponível e ele foi convocado como candidato substituto e foi totalmente preparado para cirurgia. Mas aconteceu de outro paciente ser um receptor mais compatível. Muitos candidatos a transplantes passam por esses alarmes falsos, que acabam com os nervos. Mas desta vez, seu cirurgião disse, “Tom, é sua vez”, e o moveu para a sala de cirurgia.

Jo Ann Laskaris, 69, de Manhattan, também se perguntou se sobreviveria tempo suficiente para receber um transplante. Ela teve câncer de fígado, causado pela hepatite C que contraiu de uma transfusão de sangue quando tinha pouco mais de 20 anos. Os médicos lutavam para fazer com que a doença não se espalhasse para além do fígado. Ela recebeu o lobo direito, o pedaço maior do fígado de Garcia.

O lobo esquerdo, menor, foi para Braylen Benitez, um menino do Bronx com uma doença congênita do fígado, cujo corpo havia acabado de rejeitar um transplante.

Laurenco, 57, que mora em Jackson Heights, Queens, teve uma insuficiência cardíaca severa e estava no hospital quando chegou a notícia do transplante. Durante dois anos ele precisou de uma bomba implantada para ajudar o seu coração fraco, e, assim como outros, estava vendo seu tempo acabar.

Santos, 43, teve falência renal causada pela diabetes, que já havia danificado sua visão e levado à amputação de sua perna abaixo do joelho. Os tratamentos de diálise o deixaram doente e fraco, e, como os pacientes da clínica foram morrendo um a um, ele se perguntava se teria o mesmo destino.

Depois das operações, Laskaris e a mulher de Ginz escreveram para Mirtala Garcia para agradecer, e disseram que esperavam conhecê-la um dia.

Na semana passada, os receptores e suas famílias abraçaram Garcia e seus filhos em agradecimento. Vários disseram que sentiram uma conexão profunda com ela e sua família. Laurenco, um artista, deu a ela um quadro. Laskaris perguntou se ela e sua família podem frequentar a igreja de Garcia.

Para a maioria deles, não foi um ano fácil. Vários sofreram de infeções e episódios temerários de rejeição, e todos estão passando por tratamentos complicados com medicamentos anti-rejeição e outras drogas. Mas todos estão gratos por estarem vivos e são muito conscientes de que sua sobrevivência dependeu da morte de outra pessoa, e da gentileza de sua família.

Garcia e seus filhos estão convivendo com a perda e a tristeza. E sem o salário de seu marido, Garcia, que faz faxina, luta para pagar o aluguel e alimentar a família. Mas ela disse que encontra conforto, e às vezes até alegria, ao pensar que seu marido continua vivendo através de outras pessoas, e que ele gostaria que fosse assim.

Matéria de Denise Grady
Dabrali Jimenez contribuiu com a reportagem
Tradução: Eloise De Vylder
Fonte: Uol Notícias - Internacional / The York Times
23/05/2011

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