Silvano Raia
Além de não causar rejeição, outra importante vantagem desse novo método é a de aumentar a disponibilidade de órgãos para transplantes.
A evolução da medicina e da cirurgia é marcada por inovações que resultam em progressos exponenciais. Na língua inglesa, são denominados "breakthroughs". Thomas Edison não produziu uma vela com chama mais forte. Inventou a lâmpada baseada na incandescência a vácuo de um filamento de carvão e revolucionou o setor.
Da mesma forma, estamos presenciando um "breakthrough" na tecnologia dos transplantes que abre novos horizontes para esse procedimento, justamente considerado o maior progresso da cirurgia no século 20. Consiste em nova tecnologia que emprega órgãos "modificados" ("engineered organs").
Para compreendê-la, devemos lembrar que os órgãos sólidos atualmente transplantados são formados por uma matriz de sustentação e por um conjunto de células mais nobres, denominado parênquima, que realiza suas funções.
A matriz extracelular é pouco ou nada antigênica, ou seja, não é rejeitada pelo receptor.
A nova tecnologia inclui:
1 - Retirada de todas as células do parênquima do órgão a ser transplantado por meio de uma lavagem com soluções contendo detergentes, enzimas e outros produtos com capacidade seletiva, isto é, de retirar apenas as células do parênquima, preservando a matriz (a chamada descelularização).
2 - Biopsia do órgão do receptor a ser substituído e separação das células do seu parênquima.
3 - Recelurização da matriz do órgão a ser transplantado por células do parênquima da biópsia ou por células-tronco do receptor.
4 - Oxigenação da matriz durante o tempo necessário para que estas células se multipliquem até reconstruir todo o parênquima.
5 - Transplante desse órgão "modificado", que não é rejeitado, uma vez que seu parênquima é constituído por células do próprio receptor.
O método já foi usado com sucesso em humanos para transplante de pele, bexiga, pericárdio, válvulas cardíacas e traqueia. Pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) já conseguiram transplantar fígados em roedores e prevê-se que, em cinco anos, também transplantes de rim, coração e pulmão sejam realizados com a nova técnica.
Além de não causar rejeição, outra grande vantagem do novo método é aumentar a disponibilidade de órgãos para transplante.
De fato, como os constituintes da matriz são mais resistentes à falta de oxigênio do que as células do parênquima, abrem-se perspectivas para o aproveitamento de órgãos também de doadores com coração parado. Atualmente, a captação de órgãos sólidos se limita a doadores com morte encefálica (com o coração ainda batendo).
Essa dependência, além de diminuir a captação como um todo, exige equipamento e pessoal especializados, nem sempre disponíveis nos hospitais que atendem regularmente doadores em potencial.
Como foi feito para o desenvolvimento da tecnologia atual, centros nacionais de pesquisa em transplante deveriam iniciar desde já projetos experimentais com a nova metodologia, mantendo sua tradição que nos trouxe até aqui: caminhar sempre com os pés firmes no chão, mas com os olhos nas estrelas.
SILVANO RAIA é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP.
Folha de S.Paulo - Opinião
10/11/2011
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