Enquanto os mercados negros comercializam bens ilegais como armas e drogas, o “mercado vermelho”, diz o jornalista Scott Carney em seu novo livro revelador e um tanto impreciso, comercializa carne humana – rins e outros órgãos, córneas, sangue, ossos e óvulos. Muitos dos exemplos da vida real que ele cita nesse volume aterrador fazem o leitor lembrar de um filme de terror, ou do romance devastador e distópico de Kazuo Ishiguro “Never Let Me Go” (2005), no qual ele fica sabendo que um grupo de crianças são clones criados para “doar” partes do corpo para transplante.
Em “The Red Market” [“O Mercado Vermelho”], Carney conta a história de uma batida policial, na propriedade de um produtor de leite de uma pequena cidade indiana de fronteira, que libertou 17 pessoas confinadas em barracos que disseram ter seu sangue retirado pelo menos duas vezes por semana. “A fábrica de sangue”, como foi chamada pela mídia local, “supria uma porcentagem considerável” do sangue utilizado pelos hospitais da cidade, diz ele no livro.
Carney também investiga o comércio de ossos na Índia -- país que, por quase 200 anos, foi “a principal fonte de ossos usados em estudos médicos no mundo” -- e tenta acompanhar o chefe de uma quadrilha de assalto a túmulos em Bengala Ocidental, que, de acordo com a polícia, roubava corpos de cemitérios, necrotérios, e piras funerais e empregava “quase uma dúzia de pessoas nos vários estágios da preparação dos ossos, desde a retirada a carne até sua preservação”.
Editor que contribui com a revista “Wired”, Carney escreve com um considerável ímpeto narrativo, jogando na cara do leitor a miséria do que ele testemunhou com paixão e detalhes viscerais. A maior parte da reportagem de Carney está centrada na Índia (onde ele morou e trabalhou por uma década), enquanto aborda apenas por alto o tráfico de órgãos humanos em outros pontos críticos do mundo como a Filipinas e o Brasil.
Em um capítulo Carney descreve um campo de refugiados empobrecido na Índia, para sobreviventes do tsunami de 2004, que era conhecido como Kidneyvakkam, ou Vila do Rim, por causa da quantidade de pessoas que haviam vendido seus rins a traficantes de órgãos para levantar fundos desesperadamente necessários. Os “traficantes”, escreve ele, “costumam citar um pagamento alto -- de até US$ 3 mil por cirurgia -- mas normalmente pagam apenas uma fração do preço oferecido depois que a pessoa passou pelo procedimento. Todos aqui sabem que é um golpe. Mesmo assim as mulheres chegam à conclusão de que um golpe é melhor do que nada”. Para essas pessoas, ele acrescenta, vender órgãos “às vezes parece a única opção que têm em tempos difíceis”; pessoas pobres do mundo inteiro, em suas palavras, “com frequência veem seus órgãos como um fundo de garantia crítico.”
Perto do final do livro Carney observa que “os mercados vermelhos criminosos e sem ética são bem menores do que o sistema legítimo”. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, ele escreve, “cerca de 10% dos transplantes de órgão do mundo são obtidos no mercado negro”. Mas ele enfatiza que “os mercados vermelhos estão maiores, mais alastrados, e mais rentáveis do que em qualquer outro momento na história”, e que “a globalização tornou impressionantes a velocidade e a complexidade desses mercados”.
As alegações mais alarmantes citadas no livro vêm de um relatório de 2006 divulgado por David Kilgour, um ex-membro do Parlamento canadense, e pelo advogado de direitos humanos David Matas, que sugeriu que órgãos vitais (incluindo rins, córneas e fígados) estavam sendo coletados em grande escala de membros executados da Falun Gong, uma seita espiritual banida na China. O governo chinês negou as alegações.
“Ninguém está dizendo que o governo chinês foi atrás da Falun Gong especificamente por causa dos órgãos”, diz Carney, “mas parece ter havido uma forma conveniente e lucrativa de dispor deles. Dissidentes políticos perigosos foram executados enquanto seus órgãos criaram uma fonte confortável de renda para hospitais e cirurgiões, e presume-se que muitos importantes oficiais chineses tenham recebido órgãos”.
Carney não conseguiu verificar o relatório de Kilgour-Matas de forma independente. Por isso, sua abordagem geral aqui tende a ser seletiva e muito baseada em casos específicos, focando-se em histórias de horror como o sequestro de um menino indiano que, segundo a polícia, foi levado para um orfanato “que pagava em dinheiro por crianças saudáveis” e depois “as exportava para famílias desconhecidas no exterior”.
Na visão de Carney, “eventualmente, os mercados vermelhos têm o terrível efeito colateral social de fazer a carne ascender -- e nunca descer -- pelas classes sociais. Mesmo sem um elemento criminoso, os mercados livres irrestritos agem como vampiros, sugando a saúde e a força de guetos de doadores pobres e enviando suas partes para os ricos”.
Seu livro é repleto de histórias angustiantes nas quais os destituídos e desesperados acabam sacrificando seus corpos em troca de poucos dólares que não conseguem mudar suas vidas.
Em um capítulo, Carney escreve que a maioria de doadores de óvulos do Chipre -- que “tinha mais clínicas de fertilidade per capita do que qualquer outro país” -- vinha de uma população relativamente pequena de imigrantes pobres do leste europeu que estavam “ansiosas por vender seus óvulos a qualquer preço”. Uma doadora do Chipre provavelmente recebe algumas centenas de dólares por seus óvulos, estima Carney, enquanto os compradores -- normalmente da Europa ocidental -- pagam de US$ 8 mil a US$ 14 mil pelo serviço completo da implantação do óvulo com fertilização in vitro no Chipre, “cerca de 30% menos do que nas clínicas mais baratas do mundo ocidental”.
A globalização também levou o que Carney chama de “indústria do turismo da fertilidade” para a Índia, onde, diz ele, “a gravidez de substituição, conhecida como 'barriga de aluguel' foi legalizada em 2002 como parte de um grande esforço para promover o turismo médico”. Na Clínica de Infertilidade Akanksha (que foi mostrada num segmento do programa “Oprah”), as mães de aluguel, que ganham entre US$ 5 mil e US$ 6 mil, vivem em unidades residenciais, onde “passam a gravidez inteira trancadas a chave”. A clínica cobra entre US$ 15 mil e US$ 20 mil pelo processo inteiro, diz ele, “enquanto que num punhado de estados norte-americanos que permitem a gravidez de substituição, trazer uma criança à vida pode custar entre US$ 50 mil e US$ 100 mil”.
“Antes da índia, só as classes altas norte-americanas podiam pagar por uma barriga de aluguel”, escreve Carney. “Agora está quase ao alcance da classe média. Embora a gravidez de substituição sempre levante questões éticas, o crescimento do setor torna o assunto bem mais urgente. Com centenas de novas clínicas prestes a abrir, a economia da gravidez de substituição está avançando muito mais rápido do que a compreensão de suas implicações.”
Ao abordar essas questões éticas em seu livro horrendo, porém fascinante, Carney obriga o leitor a pensar sobre os problemas morais gerados pelos avanços da medicina. Seu livro também nos pede para reavaliar os papéis que a privacidade, o anonimato e o altruísmo desempenham no atual “sistema de comércio de carne” -- que, embora seja tão perturbador de contemplar, está sujeito, assim como os sistemas de outros produtos, às equações brutais da oferta e demanda do mercado.
Matéria de Michiko kakutani para o The New York Times
Tradução: Eloise De Vylder
Fonte: Uol Notícias - Internacional - 19/06/2011